Carta / Força 22 - Iamana, a flauta encantada
Letra
Ouvindo o som de Iamana
Que anima a vida e e faz dançar
Ah! A a a a a ah
O homem lua e a mulher sol
Profetiza um novo Aeon
AEOMMM
Deus respira som
Deus respira som
Nhanderu Nhanderu
Avanenbo
Nhandereco
Ouare, tamae
Taetxa
Iamana, Iamana
Iamana mama mama mama
mama haaaaaa
Ela anuncia o fim dos tempos do kiriri
Quando a mitologia incorporou o mito de Jurupari e as mulheres foram proibidas de cantar , dançar e tocar flautas , começou o tempo do “kiriri”, a tristeza das mulheres por terem sido afastadas das festas e celebrações. Elas passaram a ser propriedade dos maridos e lhes deviam total obediência . Tinham que pedir permissão até para falar. A palavra kiriri em tupi significa calado, taciturno dá bem o tom do longo período ao qual as mulheres indígenas foram submetidas.
Para invocar o espírito do Jurupari , os homens tocavam 3 flautas longas de taquara e o espírito do legislador se manifestava trazendo novas regras que deviam ser cumpridas à risca. A mulheres não podiam sequer se aproximar da grande maloca sob pena morte.
A palavra, a música e o sopro são consideradas sagradas e mágicas para os nossos povos nativos. Iamana é aquela que roubou as flautas sagradas do ritual do Jurupari e anuncia o fim do tempo do Kiriri das Mulheres. É o arauto da Nova Era , o tempo das mulheres sol e dos homens lua conviverem, enfim, em harmonia.
A palavra tupi também nos remete a essa conexão: “tu” significa “som” e “pi” é “pé” ou “assento”. Então concluímos que para os povos originários nós somos como flautas tocadas por Nhanderu Tenondé, o primeiro som criador. Na verdade, a sabedoria indígena é uma tradição vivencial, é uma tradição mais cantada do que oral. Como diz poeticamente o Kaká Werá é uma tradição cantante: “Nhanderu é música infinita desde sempre que ecoa em um ritmo cadenciado, vibrando a luz da vida. Muitos lhe chamam de respiração do sempre-viver. Nhamandú inspira e quando sopra seu hálito, a existência simplesmente acontece.”
Desde a morte de Ceucy e seu exílio na constelação de Plêiades, a Lei do Jurupari impôs que as mulheres perdessem o seu direito de tocar suas flautas de paxiúba, uma palmeira amazônica que anda para alcançar a luz. As flautas representam um instrumento de conexão com o Divino e uma espécie de cetro do poder criativo.
Na versão Ye’pâ-masa da etnia Tukano, as mulheres roubaram as flautas de paxiúba mas, inicialmente, não sabiam mais o que fazer com os instrumentos, e foram os peixes que as ensinaram a soprá-los. Então passaram a tocá-las e a fazer tudo que os homens faziam, como pescar e caçar com arco e flecha, enquanto eles passaram aos afazeres femininos, como preparar comida e colher mandioca. A partir de então, fugiram dos homens levando os miria-põ’ra. Quando o velho Muhî-pũú, pai dos homens para os quais era dirigida a dádiva divina, depois de muito persegui-las, finalmente encontrou as mulheres, elas já estavam tocando a música do Jurupari perfeitamente, embriagadas, e já estavam realizando o ritual completo. Ele, então, furioso, enfiou um grande aerofone, simiômi’i-põrero entre as coxas de sua filha e soprou, fazendo um som tão assustador que as mulheres largaram os instrumentos e fugiram com medo. Apenas uma delas conseguiu ficar com um, curto e roliço, colocando-o dentro de sua vagina, e assim formou-se o canal do útero por onde nascem as crianças. O mito Tukano também associa o som da paxiúba à primeira menstruação.
Entre os Kamayurá, Tukanos e outras etnias do Alto Xingu e do noroeste amazônico, quando estes instrumentos são executados as mulheres são proibidas de vê-los, correndo o risco de estupro coletivo. As flautas de jupati e os trompetes de paxiúba, os miria-po’rã nunca podem ser vistos (nunca) pelas mulheres, sendo guardados na casa dos homens. Como as mulheres nunca podem ver os miriá-põra, sob risco de morte, elas demonstram medo dos instrumentos, lembram da morte/castigo de Ceucy e se afastam de todo o universo simbólico do Jurupari.
Aqui no nosso Juremar, recebemos as flautas de paxiúba do pajé Raimundo da tribo Dessana na expedição que fizemos à Amazônia em 2011, trocando nossas experiências na ativação do raio feminino do destemor, nos conectando com as mulheres da tribo, ouvindo as histórias sobre o Jurupari que hoje está mais associado a uma espécie de demônio colonizador e opressor. Assim, ao tocar nossas flautas hoje, abrimos portais dimensionais e o som criativo cura as feridas do passado. A flauta mágica agora é nova mente de Mamãe.